Contos

À Dorothy Parke

Sinara Foss


Que ódio, que ódio. Passa por mim como se eu não existisse e vai direto pro quarto. Nem me olhou. Nem mesmo ouviu o que falei. Minha vontade é de dizer tudo o que penso, o que sinto. Não.... Na verdade, minha vontade é de pegar um objeto qualquer ao meu alcance, duro e pesado, como esse enfeite de mesa aqui e bater em sua cabeça. E vê-lo cair. Vê-lo cair tão baixo quanto me sinto neste momento. Queria ver o sangue jorrando, a vida se esvaindo. Desgraçado.

- Ei, espera ai! Eu falei contigo. Acho que o mínimo que você me deve é uma explicação. Que? Não tenho nada com isso? Como assim, não tenho? Você jurou fidelidade da frente do padre, jurou que ia ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença até que a morte nos separasse. Mas eu tô aqui, aqui. Viva. Embora nestas horas eu preferisse estar morta. Ei, você está me ouvindo?

Filho da puta. Ainda ri, debochado. Vontade de bater nesta cara dele até fazer esse risinho idiota sumir. Se eu fosse mais forte faria ele cuspir esses dentes com sangue, um por um, de tanto que eu ia bater. Maldito foi o dia que me abobei e casei com essa merda. Devia ser proibido deixarem uma moça se casar antes dos 23 anos. O que uma tonta de 20 anos sabe da vida? Só vê se é bonito, a marca do carro e mais nada. Foi o que eu fiz....
Tomei.... Tomei bem naquele lugar.

-O quê? Não entendi isso.... Quer descansar? Piada, né? Sou eu que te canso? Por isso chega a essa hora? Olha pra mim, olha, escuta o que eu falo!

Se ele não quer mais ficar casado comigo, por que não diz? Por que não é fiel consigo mesmo? Por que não chega pra mim e diz que não quer mais? Não seria muito mais honesto? Ele deveria dizer: olha, não tá dando mais, vamos cada um seguir pro seu lado, você pode ficar com as crianças e eu os pego aos finais de semana... Estou apaixonado por outra... Ai, que dor! Eu conseguiria ouvir isso? Sozinha eu teria a minha dignidade e poderia viver muito melhor. Viver melhor sem ele?

Não, não.... Eu não poderia. Eu não saberia ser sozinha. Nada me decifra tão bem quanto uma passagem do livro da Clarice Lispector “A Paixão Segundo G.H.” que fala na terceira perna. Ele é minha terceira perna. Acostumei-me a andar com as três e não sei e não quero andar somente com duas. Como eu poderia viver sem ele? Parece que não sei, eu não saberia nem encontrar uma razão para acordar no dia seguinte. Eu vivo por ele, para ele.

-Vai tomar banho, é? Não tomou no Motel, na casa dela... no lugar onde estava? O quê? Como você tem coragem? Não, não fala nada! Não fala, porque eu não quero saber, não quero ouvir. Para! Para!

Meu Deus! Que fraca, que nada que eu sou que me sujeito a essa situação. Sei que ele tem outra e aceito. Como posso? Eu sou nada sem ele, não tenho vida sem ele. Não poderia sustentar as crianças, não poderia seguir adiante. Tantos casamentos passam por fases difíceis e depois melhoram. O nosso vai ser assim. Essa é só uma fase, só pode ser. Nós vamos passar por isso e tudo vai voltar a ser como era. Vamos ser felizes, vamos terminar de criar os nossos filhos.

-Você não vai comer nada? Peraí, não deita já. Eu aqueço algo rapidinho. Não quer? Está bem. Vamos dormir? Sim. Já ajeito a cama. Está muito quente? Espera que eu já troco de cobertor. Está melhor, agora? Está bem. Já desligo a luz. Boa noite pra você também.

 

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